O BRASIL PRECISA DE NATUREZA: Palmares é Transição para o século XXI

O BRASIL PRECISA DE NATUREZA: Palmares é Transição para o século XXI

*Diosmar Santana Filho

O momento que vivemos exige questionar fundo dentro de nós mesmos o que realmente somos como povos e que natureza seremos neste século, sem temer em mostrar tudo que conseguimos ser como totalidade ou totalização nos últimos 521 anos de invasão, exploração, apropriação de terras, territórios e territorialidades dos povos originários sobre as quais se ergueu o colonialismo «civilizatório» que espoliou a África e a América. 

Uma reflexão em confluência com ideias de Nego Bispo sobre a vida na caatinga piauiense, contra tudo que mata em possibilidades epistemológicas. É uma contribuição com o Chamado para uma Transição Ecossocial no Brasil, por uma transição na qual pude refletir com esse nosso intelectual geógrafo, o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves – sobre o conceito de transição, no país que se vê por lentes embotadas pela gênese do colonialista. Uma contribuição sobre o que podemos sentir com os pés na terra, no território, na territorialidade e na população, nessa contemporaneidade que exige muito mais que mudança, que exige coragem de nos transformarmos! 

Nesse campo faço o exercício de confluir a partir da observação do professor, sobre o uso do conceito de território de forma que o destitui da acepção tão cara para o conhecimento geográfico. Afirmando que o território não se trata de pedaço de chão, que o elemento chave do conceito de território são as relações de poder – no fundo, é sobre quem está controlando o pedaço de chão e sua territorialidade.  

Aqui busco a memória epistemológica de quem sente o território na realidade populacional e na memória coletiva. Porque o processo carece de uma profundidade já sinalizada por militantes e intelectuais negros brasileiros, como o ex-deputado federal Luiz Alberto, fundador do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Partido do Trabalhadores (PT) na cidade do Salvador (Bahia). 

Dialogava com Luiz Alberto sobre a necessidade de se fundar uma nova democracia no país, capaz de alcançar a luta da população negra quilombola pela reivindicação da terra e do território. E com sapiência ele me alertava da dificuldade diante dos retrocessos, sobre os alicerces do regime que se estabeleceu como democracia vigente, pois uma nova democracia depende também de debater uma nova Constituição. Estava, diante de um militante das Assembleias Constituintes e mandatário nos marcos da Constituição de 1988, sendo desafiado a pensar nos limites da transição alcançada pelas gerações das lutas contra o estado ditatorial do século passado. 

O que questionei a Luiz não veio só da observação do passado, mas, do olhar para o futuro em sua possibilidade de mudanças. No momento em que realizei minha pesquisa de mestrado em Geografia, perguntava por que estávamos, no século XXI, vivendo a mesma luta política do século XVI? O que estamos vivendo é a luta política e racial da população negra. Quando expressamos a palavra “quilombo”, estamos falando do movimento por território e territorialidade, vivo por mais de cinco séculos, pela sua grande marca o “Quilombo de Palmares”. 

Para maior conhecimento sobre a importância do Quilombo de Palmares na história da geopolítica brasileira, não me ative diretamente ao que já foi publicado pelas humanidades e pela luta contra o capitalismo, mas ao que escreveram os racistas. E a obra do médico eugenista Nina Rodrigues é um mar de memória, no seu alerta sobre do perigo de Palmares nascer como civilização negra abaixo da linha do Equador. Diante, desse pensamento importa questionar as ideias que estruturam as leis publicadas em 1850 (Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queiros) e posteriormente, em 1971, a Lei do Ventre Livre. Um conjunto de formas e estruturas racistas, normatizadoras do direito privado da terra, do controle de pessoas africanas em território nacional. Da mesma forma, a lei de alforria das crianças nascidas em terra imperial. 

As leis normatizaram o genocídio da população negra em território e a política pública de imigração de povos brancos de origem caucasiana. Em pesquisa sistematizada pelo geógrafo Rafael Sanzio Anjos [1], entre 1871 e 1920, cerca 3.390 milhões de europeus ocidentais foram beneficiados pela política eugenista, para migrar em condições humanas (com trabalho e acesso à terra) ao Brasil. Quase o mesmo número dos 4 milhões de africanos de diversos povos traficados e escravizados entre 1535 e 1850 em condições não-humanas. Esse foi o grande projeto civilizatório dos trópicos, como bem registrou a geógrafa Lia Osório em artigo sobre as origens do pensamento geográfico brasileiro [2]. 

Um projeto eugenista francês da Escola da Broca, de 1860, assimilado aqui por Nina Rodrigues, diante da possibilidade de Palmares alcançar a essência da auto liberdade como a Nação Negra da América, como veio a se tornar depois a República do Haiti, pelos africanos e descendentes, que ao denunciar o Iluminismo e suas ideais de liberdade, fraternidade igualdade no sistema mundo estão secularmente sentenciados de morte. A insurgência dos haitianos resulta numa Nação violentada na escuridão do mundo. Todos são generosos com o pensamento francês libertário, referência de boa parte da ciência brasileira, principalmente da Geografia, mas, se mantêm dentro do acordo global de não mover a Nação Negra do exemplo dado pelo colonizador.  

De conhecimento dessa escala, apresento algumas referências epistemológicas, como Clóvis Moura, esse intelectual piauiense que, em 1959, publicava a obra “Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas”, dois anos antes da publicação da segunda grande obra do pensador argelino Frantz Fanon, em 1961: “Os Condenados da Terra”. O silencio intelectual nacional sobre a obra de Moura é violento diante da grandeza dos seus mais de vinte livros publicados. Moura foi também  um dos fundadores do MNU, nas escadarias do Teatro Municipal da cidade de São Paulo. 

A invisibilização de Clóvis Moura é a negação das memórias territoriais negras na África e em diáspora que firmaram pensamentos de insurgência e descolonização, para uma perspectiva de nação que tenha na corporeidade negra a comunidade e o território como transição humanitária, já na segunda década do século passado.

Trago também ao diálogo Abdias Nascimento,  que nas décadas de 1960 e 80 moveu as Artes Negras transatlânticas. Se buscarmos os marcos conceituais da Constituição Federal e tudo de grandeza com a política pública de ações afirmativas nesse milênio, será preciso voltar a Abdias, inclusive para não continuar no debate esvaziado sobre genocídio – já teorizado há 42 anos na obra “O Genocídio do Povo Negro Brasileiro”. 

Toda essa construção questiona os mais de 132 anos de República sem entender que o Brasil se tornou um Estado Nacional com o dinheiro de banqueiros ingleses (traficantes de seres humanos nos Oceanos Atlântico, Índico e Pacífico). É continuar negando que essa República veio ao mundo para representar o que o professor Carlos Walter nos questionou, sobre a falta de radicalismo nacional. Respondendo: para o radicalismo teremos que colocar no centro a tragédia que nos forma com o povo do Atlântico Negro, conceitualmente ressignificado pela pensadora Beatriz Nascimento em ancestralidade diaspórica.  

Teremos que aceitar quem somos e que estamos aqui por essa condição de violação de corpos, terras, territórios e territorialidades que atravessaram ou afundaram no transatlântico, aquilo que forma nossa ciência, aquilo que forma a geografia nas costas atlânticas, pacífica e do Índico do continente África.

Nossas dimensões de mundo, aqui representadas, não podem ser construídas pela negação do conhecimento que essa escala nos trouxe até aqui. Como explica, pela “amefricanidade” [3], a pensadora Lélia Gonzalez, no convite à unidade da resistência dos povos, a unidade que reconhece os povos e territórios em diferenças e diversidades nas Américas negras e indígenas, naquilo que será reconhecido como continente. 

A construção de uma unidade pela resistência, pela diversidade, pela diferença não será bem sucedida com as bases intelectuais da assimilação.  Que a gente consiga falar com essa essas dimensões para pensar o Estado no imaginário da cultura com o qual o intelectual Patrick Chamoiseau nos presenteou em movimentos na Martinica [4]. Questionando o alcance da independência ao pensar pela interdependência, não adianta uma independência que nos coloque sentados na mesma cadeira e debaixo da mesma bandeira de quem foi dependente. É preciso ter a interdependência para dialogar com quem vai construir uma nova transição. Não podemos ser independentes e nos mantermos em diálogo profundo com quem nos oprime. 

Não podemos construir uma transição sem reconhecer e apresentar futuro para cerca de 3.000 comunidades quilombolas certificadas pelo Estado. Essas representam a realidade de uma sociedade que não se calou diante do genocídio que funda a nação simbólica encarnada no Estado Nacional. Uma luta fortalecida com as mulheres negras em 1998, com a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, pela unidade da luta nas diferenças – em Valença, no Rio de Janeiro, que reuniu mulheres negras das cidades, dos povos de terreiro, das periferias, quilombolas, trabalhadoras domésticas, artistas e estudantes. 

Uma luta memorizada na “Marcha Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver, Documento Analítico e Declaração”, de 2015, quando cerca de 50 mil mulheres negras marcharam na Esplanada dos Ministérios em Brasília, contra o racismo e o sexismo, e apresentaram carta à ex-presidenta Dilma Rousseff e ao Congresso Nacional, denunciando o projeto político do país que tinha em quatro anos assassinado cerca 60 mil jovens negros – uma política de genocídio, conforme relatório publicado naquele mesmo ano pela CPI do Senado Federal.  Se incluirmos os assassinatos registrados como conflitos no campo pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) os números serão muito maiores. 

Uma Transição Ecossocial não pode repetir o que o ambientalismo nacional fez até agora, ignorando esses marcos geopolíticos de defesa da soberania dos povos pela população negra. Esses marcos denunciaram a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reconhecia o Brasil como signatário sem questionar o massacre interno contra a vida população negra. Pela ação do movimento negro brasileiro na década de 1960 denunciou-se o Brasil e a própria Declaração conivente com o Estado racista. 

Esses movimentos fortaleceram o tombamento da memória de Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas, em 1985, como Patrimônio Histórico Nacional. Isso representa um marco para história da geopolítica desse país, que se somou ao tombamento do Ilê Asé Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca), no bairro do Engenho Velho, em Salvador. Uma cidade que em 2008, tinha mapeado 1.410 terreiros de candomblé, em trabalho realizado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA) – um território onde se fala Banto, Yorubá, Jeje, Nagô, além do Português. Os terreiros de matriz africana e indígena são patrimônios culturais – territorialidades estimadas em quase vinte mil no território nacional.

Hoje estamos vivendo o pior momento da históriado século XXI, com a pandemia de Covid-19 e o racista que preside o Brasil. Ironicamente, em face à primeira Década Internacional dos Povos Afrodescendentes da ONU (2015-2024). O genocídio constitucional do povo negro brasileiro é aplicado conforme manual eugenista que há séculos massacra o povo haitiano. 

Isso para provar que não se pode ignorar que nesse país se pensa como Nina Rodrigues. Seu pensamento forma os médicos e os juristas das maiores universidades nacionais, porque é preciso eliminar cotidianamente Palmares antes que renasça!

 Uma transição, portanto, precisa lutar pelo censo demográfico contra a academia leniente, com a anulação de dados que vão revolucionar a demografia nacional, porque Palmares se revelará em população negra quilombola, como grupo populacional étnico e político em luta pela terra, pelo território e nas territorialidades.  

Significa que à pergunta «por que é que a agenda do século XVI está no século XXI?» se responde com a luta ancestral dos que não aceitaram o reconhecimento de humanidade pela assimilação e lutam pela construção de um Estado com políticas, teorias, críticas e tecnológicas, fora da assimilação e por isso estão fora, porque não se marcha com quem nos nega. 

Se é para ser Transição – será preciso pensar que “Faremos Palmares de Novo”.

 *Diosmar Santana Filho é Geógrafo, Doutorando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador Associado da Associação Brasileira de Pesquisadores (as) Negras(os) – ABPN. e-mail: ptfilho@gmail.com

Foto: Canal do Youtube da NASA Live Stream – Earth From Space LIVE Feed | ISS tracker & chat

Fontes:

[1] Quilombos. Tradição e cultura da resistência. São Paulo: Aori Comunicação, 2006.

[2] Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a ideia de ordem (1870-1930). In.: CASTRO, Iná de Elias de. GOMES. Paulo Cesar da Costa. CORRÊA. Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. 15ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 309-352.

[3] GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.

[4] Luana Antunes Costa. “É PRECISO IMAGINAR”: ENTREVISTA A PATRICK CHAMOISEAU. Revista Brasileira do Caribe, São Luís – MA, Brasil, vol. XVI, nº 30. Jan-jun 2015, p. 207-219 

Chamado para uma Transição Ecossocial no Brasil

Chamado para uma Transição Ecossocial no Brasil

Chamado para uma Transição Ecossocial no Brasil

 

Nossa casa comum, o Planeta Terra, está doente e precisa de cuidados – isto está cada vez mais evidente. Os efeitos acumulados da exploração da natureza são tamanhos que, se quisermos sobreviver, temos que mudar nosso modo de vida e de sociedade e a forma como nos relacionamos com o Planeta que habitamos e compartilhamos com tantos outros seres – a Terra, que gera e nutre nossa e toda vida nela existente e dela dependente.

 

A emergência climática e a devastação socioambiental são alarmantes. A temperatura média sobe a cada ano, causando ondas letais de calor, tempestades, ciclones, furacões, longas secas e inundações devastadoras. Os desmatamentos, queimadas e incêndios florestais são cada vez mais extensos e violentos. A biodiversidade do Planeta se reduz a cada ano, em todos os biomas – ou sistemas ecogeográficos e bioculturais. Safras agrícolas vão ficando comprometidas e a fome aumenta. A crise hídrica é generalizada, com secagem de nascentes e riachos e crescente estresse de bacias hidrográficas, seja pela drenagem de águas para irrigação de grandes monoculturas, seja pela demanda de mega-empreendimentos como barragens, hidrelétricas, hidrovias e mineradoras.

 

Migração forçada, violência e repressão são consequências diretas desse processo, o que afeta tanto povos indígenas e comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais camponesas – vitais para a preservação dos biomas e ecossistemas –, como os trabalhadores e trabalhadoras nas cidades, cujas condições de vida se deterioram. Desemprego, fome, insegurança pública e falta de acesso à educação, à saúde, à moradia digna e ao transporte público de qualidade são a realidade de milhões de brasileiros e brasileiras.

 

Enquanto o povo sofre com a violação de seus direitos, a renda se concentra cada vez mais, como resultado das políticas neoliberais e entreguistas. Comprometido com essas políticas, o atual governo promove a submissão dos ecossistemas à lógica dos negócios e destrói as estruturas do Estado de preservação e conservação ambiental, ao mesmo tempo em que ataca as populações que defendem a vida e os territórios nacionais.

 

As fronteiras da mercantilização se expandem em direção às florestas, sem poupar nenhum dos nossos biomas, destruindo ecossistemas ricos em diversidade biológica e sociocultural, causando desequilíbrios e zoonoses potencialmente mais graves que a Covid-19. A pandemia atual pode e deve ser encarada como um sinal de alerta: ou levamos esse aviso a sério e atuamos coletivamente em mútua proteção e prevenção de novos surtos ou a catástrofe se aprofundará. Essa parece ser a aposta do capitalismo global e das elites nacionais, historicamente devotadas somente a seus próprios interesses, ainda focadas no “desenvolvimento” destruidor, no extrativismo predatório e na financeirização de tudo – terra, água, matas, ventos, sol, fotossíntese, vida, a natureza toda.

 

Sabemos quem mais sofre com isso: a classe trabalhadora, as mulheres, os povos e comunidades indígenas, as populações negras, migrantes, empobrecidas e periféricas. Às formas históricas de exploração e opressão somam-se modalidades recicladas de racismo e de injustiça ambiental. A pandemia da Covid-19 aprofundou as desigualdades em um momento inédito de convergência de crises: social, energética, hídrica, alimentar, sanitária e ambiental e dos cuidados. A crise ecossocial e civilizatória é, ainda, aprofundada por uma deriva política e ética. O “normal” é o problema e as apostas em um «novo normal» aprofundam essa lógica.

 

I. Uma emergência climática com resposta insuficiente

Embora hoje mais evidente, conhecíamos há tempos a envergadura da tragédia socioambiental. Um século de pesquisas foram identificando os efeitos das atividades humanas no clima terrestre, o aumento das concentrações atmosféricas de CO 2 e os riscos e impactos das mudanças climáticas. O clima do nosso planeta depende de um equilíbrio entre os fluxos de entrada e saída de energia. A radiação solar que chega é balanceada pelo calor que nosso planeta irradia de volta para o espaço, que é apenas uma fração do calor liberado pela superfície, já que parte dele permanece na Terra pela existência na atmosfera de Gases de Efeito Estufa (GEEs). Se a concentração desses gases aumenta, menos calor escapa para o espaço; com o acúmulo de energia no Sistema Climático Terrestre, temos o aquecimento do planeta, já com tantas evidências.

 

Nos países capitalistas centrais e na China, a maior fonte de emissões é o uso de carvão, petróleo e gás como fonte de energia. Já no Brasil, a principal fonte dessas emissões é a mudança do uso do solo, com o desmatamento, queimadas e uso intensivo de agrotóxicos. Em seguida, as emissões provenientes da agropecuária – infladas pelo gigantesco rebanho bovino – e do setor de energia, que faz uso intensivo de combustíveis fósseis em termelétricas e nos transportes. O agronegócio responde, no Brasil, por 70% das emissões dos GEEs.

 

A desestabilização do clima já tem impactos irreversíveis, como a redução sensível nas geleiras, a perda massiva de gelo marinho no Ártico e o comprometimento de corais tropicais, além da extinção de inúmeras espécies. Temos uma evidente emergência climática e ambiental que precisa ser tratada como tal para que os danos não sigam se agravando em progressão exponencial. As iniciativas coordenadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), tais como as Conferências e Convenções sobre o Clima e a Biodiversidade, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo não revertem nem mesmo melhoram a situação. Créditos de Carbono ou Redução Certificada de Emissões tornam-se garantias do direito de poluir: mecanismos de vergonhosa especulação, em que governos pressionados por empresários, principalmente do agronegócio e da indústria do petróleo, negociam subsídios e isenções fiscais para aumentar a produção, enquanto as temperaturas continuam subindo.

 

Uma simples ampliação da presença das renováveis na matriz energética não é suficiente. Na última década, a geração de eletricidade por eólicas quintuplicou e a geração solar cresceu 34 vezes, mas as emissões de CO 2 provenientes da queima de combustíveis fósseis cresceram 14%. Sem «achatar a curva» da demanda energética e fazer a inserção das fontes renováveis de modo substitutivo, e não apenas complementar, as renováveis crescerão – acompanhadas de impactos sobre os territórios, da mineração de matérias-primas à instalação dos equipamentos – sem equacionar a questão climática e os impactos socioambientais.

 

Nem se pode apostar que “novas tecnologias” nos salvarão como por milagre. A geoengenharia nos condena a cenários mirabolantes, similares aos do paciente que não pode sair da UTI… Ela ameaça criar uma permanente dependência dessas tecnologias, com seus efeitos colaterais terríveis, como secas e fomes regionais e agravamento da acidificação oceânica e uma concentração ainda maior do poder político e econômico sobre estes processos. E podem ter consequências absurdas, como um «remédio» que mata o doente mais rápido que a enfermidade…

 

II. O novo contexto: acordo verde e a importância de uma Transição Ecossocial

Não há “maquiagem verde” que funcione se não mudarmos o sistema. O quadro ameaçador exige uma mudança de rumo. Nos países centrais, iniciativas diferentes vinculadas a um Green New Deal, ou Novo Acordo Verde, estão em construção. Na América Latina, um Pacto Ecossocial do Sul foi recentemente lançado, buscando articular justiça redistributiva, de gênero, étnica e ambiental. A disputa política é intensa. Por um lado, atores dominantes apostam em novas articulações entre o imaginário ambiental e a acumulação do capital. Por outro, atores críticos denunciam as tentativas de renovação do «capitalismo verde». Sem transformações substanciais do modelo de produção, consumo e distribuição – isto é, das raízes do aquecimento global e das mudanças climáticas – o quadro se agravará, aprofundando as desigualdades sociais e Norte/Sul, a financeirização da natureza e o racismo ambiental.

 

No Brasil e no restante da América Latina e do Sul Global, caminhos para a transformação real vem sendo criados há muito tempo. Em nossos países, mesmo tendo sido moldados pela colonização e pelo racismo estrutural, populações indígenas, quilombolas e uma grande variedade de comunidades, coletivos e experiências resistem em seus territórios e culturas e demonstram que é possível outra relação com a teia da vida. Para nossos povos resilientes e resistentes, a terra é mãe que gera e nutre: da Pachamama, na tradição andina, à “Terra sem Males” – Ivy Marãey, na tradição guarani; e Paraíso Terrestre, Criação divina, na tradição cristã. Ao contrário da destruição promovida pelo capitalismo globalizado, exacerbada durante o Antropoceno – a época geológica atual em que a espécie humana é a determinante –, impõe-se reconstruir nossa relação com a natureza, percebê-la de novo como a casa de tudo e todos/as, que precisa ser cultivada e preservada, em interação e harmonia com os outros seres vivos com quem compartilhamos o mesmo espaço.

 

O mesmo processo de expropriação e mercantilização da natureza impacta a classe trabalhadora. Atingidos pelo desemprego, precarização das condições de trabalho, flexibilização de direitos, informalidade, jornadas cada vez mais longas, violência e piores condições de vida, os trabalhadores e trabalhadoras das cidades vivenciam a mesma lógica à que o capital submete a natureza, com níveis de degradação e destruição similares. Apesar disso, resistem, criam alternativas e devem ter papel de destaque na mudança desse modelo. A transição aqui proposta implica a criação de um amplo programa de garantia de direitos, redução das jornadas de trabalho e geração de empregos capazes de recuperar as condições ambientais degradadas, assim como de postos de trabalho que transitem para uma economia de baixo carbono, tanto do ponto de vista do consumo de energia como da produção de bens materiais e serviços.

 

Nas cidades, no campo, nas águas e nas florestas vão se criando novas formas de entendimento desse metabolismo humanidade/natureza e vão se recuperando tecnologias milenares de convivência, sobrevivência e reexistência da humanidade e do planeta. Os movimentos de trabalhadores/as rurais sem-terra, de quilombolas, ribeirinhos/as, pescadores/as e povos da floresta, de pequenos/as camponeses/as e agricultores/as familiares, de sem-tetos, feministas, ambientalistas; as organizações sindicais e associativas de trabalhadores/as; a negritude, as juventudes, os LGBTQ+s e os mais diversos movimentos populares resistem, resgatam ensinamentos ancestrais indígenas e afro-ameríndios, enquanto unem teoria e prática para refazer as relações com a natureza e entre os/as humanos/as.

Nós nos reconhecemos nessas lutas, em suas ideias e ideais, delas participamos e nelas apostamos, compartilhando caminhos e horizontes com todas aquelas que têm apostado e construído, no dia a dia, em nível local, experiências e agendas vinculadas à ecologia, à justiça socioambiental, à descolonização, ao Bem Viver, ao Outro Mundo Possível.

 

III. Chamado à construção de uma estratégia comum de transição

Este é um chamado inicial para a construção coletiva de um projeto de profunda transição ecossocial no Brasil, que formule alternativas capazes de interromper o longo ciclo de destruição comandado pelo capitalismo global e nacional baseado nos combustíveis fósseis, e reconstruir um horizonte de futuro, perdido em nosso trágico presente. Esse projeto só pode ter êxito se for fruto de reflexão e ação coletivas, capazes de incorporar variadas formas de conhecimento, saberes, experiências e tecnologias — tanto as reconhecidas como “científicas”, como as de tradição milenar, que o racismo tachou de «inferiores» para expropriar os povos colonizados das riquezas deles oriundas. Esse projeto deve resultar da convergência de diferentes protagonistas, num mosaico capaz de imaginar e construir alternativas reais, levando em conta toda nossa diversidade. Buscamos uma formulação capaz de articular as diversas dimensões que envolvem a crise ecossocial, em um processo de transformação das relações de produção e reprodução da vida, em propostas e programas concretos de ação, em todos os níveis e com todos os/as agentes envolvidos/as, cada qual com seu grau de responsabilidade pelos problemas e correspondentes soluções.

 

Trata-se não apenas de formular propostas concretas, mas de articulá-las em uma estratégia de transição para outro paradigma de sociedade – ecossocialista. O futuro começa a ser construído aqui e agora, mas sem uma bússola que nos orientes nas alianças políticas. Nas lutas dos territórios e nas diversas temporalidades das diferentes iniciativas, conquistas importantes podem ser perdidas e rapidamente dar lugar a grandes retrocessos, como os que vivemos hoje. Temos que ser capazes de encadear medidas de contenção de desastres e reformas, que sabemos emergenciais, com as lutas por justiça social e ambiental e propostas de legislação duradouras. Mas essas medidas e essas lutas só serão viabilizadas com a construção da força social e política capaz de impor sua efetivação, uma força a se tornar cada vez mais coesa nas lutas pela descarbonização do processo produtivo e da sociedade e por alternativas sistêmicas que se reforcem mutuamente.

 

IV. Uma agenda aberta e propositiva

Precisamos construir respostas urgentes, mas não apressadas. Olhando para o futuro, não podemos nos permitir cometer os erros do passado. As diretrizes abaixo são eixos para uma transição ecossocial no Brasil que, sem desconsiderar a conjuntura atual alarmante, buscam ir às raízes dos problemas, articulando justiça social e ambiental. Elas devem ser aprofundadas e desdobradas em orientações transversais, mas também em políticas e ações específicas.

 

1. Recompor e reorientar as políticas ambientais.

Precisamos defender e recompor a política e o sistema de gestão e controle ambientais, aviltados pelos governos recentes, bem como reorientá-los, para que ganhem sentido estratégico. As políticas ambientais não são obstáculo, mas condição prévia de qualquer avanço social no Brasil, articulando-se com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. Devem ser defendidas e reforçadas no terreno legislativo, jurídico, administrativo e das políticas públicas. É preciso repensar as políticas estaduais e municipais a partir da ótica socioambiental e recompor técnica e financeiramente os órgãos que implementam as políticas fundiária e ambiental, de fiscalização das unidades de conservação e dos impactos ambientais de empreendimentos e controle das áreas desflorestadas.

 

2. Desmatamento Zero com manejo e restauração das florestas com espécies nativas.

É urgente reduzir ao máximo o desmatamento, sobretudo nas áreas de expansão da agropecuária, cuja contribuição é a principal nas emissões nacionais de GEEs (44%). Assegure-se, contudo, a imensa sociobiodiversidade presente em nossos biomas, sendo os povos e comunidades tradicionais um fator dela determinante. Devemos incentivar, favorecer e proteger as Reservas Extrativistas (RESEX), as de Desenvolvimento Sustentável (RDS), as Privadas de Proteção Natural (RPPN), as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), assim como reformular a política para os nossos biomas – ou sistemas ecogeográficos e bioculturais –, a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado, a Caatinga, o Pampa e os ecossistemas costeiros, todos ameaçados no Brasil, cuja legislação específica é atualmente desrespeitada.

 

3. Promover a demarcação e a autonomia imediatas dos territórios e os direitos da natureza.

É essencial, diante do autoritarismo e das violências socioambientais e étnico-culturais, fortalecer a autodeterminação dos povos e os direitos da natureza, da autodefesa das comunidades socioterritoriais e de suas lideranças, com apoio mútuo e solidariedade. É urgentíssimo garantir a demarcação e o respeito das terras indígenas, dos territórios quilombolas e agroextrativistas. São ações fundamentais e impostergáveis para impedir a destruição dos ecossistemas mais ameaçados: conter o avanço da fronteira agrícola, principalmente, no Cerrado, na Amazônia e no Pantanal, e aumentar a fiscalização para impedir queimadas criminosas; acabar com os garimpos e madeireiras ilegais na Amazônia, em especial nas áreas de povos indígenas, sobretudo, os em isolamento voluntário ou de recente contato; promover e garantir a proteção de áreas livres de mineração. O direito à consulta livre, prévia e informada deve ser garantido aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, conforme assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com base nos protocolos comunitários que eles têm construído. Isso significa, também, por todas as partes, o combate à apropriação privada dos territórios desses povos e comunidades pelos megaprojetos e pela mineração predatória que trazem sofrimento e morte.

 

4. Promover a agroecologia e a soberania alimentar, implementar uma reforma agrária popular.

O modelo de produção baseado no latifúndio, na monocultura, na exploração industrial de animais e na intensificação tecnológica e creditícia, a despeito da propaganda, é danoso ao meio ambiente, aos trabalhadores e trabalhadoras agrícolas, aos consumidores e consumidoras de seus produtos e à economia nacional, ao concentrar ativos e investimentos, voltar-se à exportação, gerar poucos empregos e encarecer a alimentação. Parar a destruição e criar amplos programas de reconstrução do que foi destruído requer encarar de frente os responsáveis e seus interesses, enquadrar o agronegócio, o setor ruralista influente nos três poderes da República e todos seus tentáculos, inclusive os Tratados de Livre Comércio, e avançar em uma reforma agrária popular. Ao mesmo tempo, simultâneas às campanhas de doação de alimentos em tempos de pandemia e iniciativas que articulam campo-cidade, é preciso ampliar e potencializar a construção da agroecologia e da soberania alimentar, como a única via capaz de acabar com a fome e garantir o direito à alimentação saudável e de qualidade. Isso também exige consideração da justiça reprodutiva, políticas de saúde coletiva e preventiva, além de reparação econômica, cultural e sociohistórica aos povos espoliados secularmente para garantir o atual padrão de reprodução capitalista e de relações humanas e ambientais.

 

5. Proteger as águas e sistemas hídricos.

O Brasil, privilegiado em potencial hídrico, enfrenta uma crescente escassez de água, pois a segurança hídrica da população é subordinada aos interesses do agronegócio, das mineradoras, das empreiteiras e concessionárias privadas de serviços públicos de água e saneamento. A “indústria da seca” ganha novas formas, gerando desperdícios, crises hídricas e o definhamento de bacias hidrográficas. A água reduzida a mera mercadoria cria riscos crescentes para toda a sociedade. Porém, como um bem comum, precisa estar disponível, em quantidade e qualidade, através de serviços públicos, para o atendimento das necessidades humanas e dos demais seres do planeta. Para tanto, impõe-se a universalização do saneamento ambiental, além do básico, com a eliminação das fontes de poluição agrícola (pesticidas e fertilizantes), química e industrial, e a proteção dos nossos rios e aquíferos. A água exige uma administração democrática, participativa de fato, com distribuição de responsabilidades e arranjos institucionais complexos e eficientes.

 

6. Transição energética e produtiva, para superar o uso dos combustíveis fósseis.

Precisamos, sim, assumir o desafio de descarbonizar nossa matriz energética e de transportes, adotando fontes mais limpas, renováveis e adequadas às exigências atuais, porém, de uma forma que desmercadorize, democratize e descentralize as alternativas. Isso requer também alterar a demanda no sentido oposto ao atual modelo de consumo e produção «infinitos». E exige garantir a criação de “empregos verdes” de verdade, capazes de permitir um deslocamento das atividades relacionadas à produção de mercadorias e serviços de alto impacto, geradoras de GEEs, para outras mais harmoniosas com o meio e de fato sustentáveis.

 

7. Um novo modelo de cidade e consumo.

Nossas cidades se tornaram ou estão se tornando inviáveis; precisam ser transformadas. A especulação imobiliária monopoliza as regiões centrais, suas estruturas e serviços, empurrando para as periferias a população empobrecida e as atividades mais poluentes. Precisamos repensar a mobilidade urbana, a partir de sistemas de transporte público acessíveis e com interligação entre os diferentes modais, de baixo carbono, que desestimule o uso dos veículos particulares e de dimensões e consumo extravagantes. Igualmente importante é garantir o direito à moradia e à democratização da cidade. Garantir esse direito supõe: a. moradia sustentável; b. combate a uma lógica capacitista de gestão urbanística; c. captação de energia solar; d. sistemas de iluminação, ventilação e refrigeração de baixo consumo, com distribuição de bens e serviços de forma mais racionalizada; e. fortalecimento da economia local e solidária, como as feiras livres e a troca de produtos e f. ampliação da reciclagem e reuso de materiais e águas servidas. Sem justiça socioambiental, não há direito à cidade.

 

V. Uma construção coletiva

A economia fossilista e predatória da natureza em que vivemos está estreitamente ligada à lógica financeira, de produção e crescimento a qualquer custo, concorrência e especulação irrestritas, austeridade fiscal, concentração de renda, propriedade e poder e geração de desigualdades e exclusões. Da mesma forma, uma transição ecossocial está associada a uma lógica econômica de bem-estar, garantia de renda, serviços e direitos, empregos verdes, cooperação e solidariedade, prioridade para a reprodução e o Bem Viver, cujas ramificações compreendemos e abarcaremos em nossas propostas futuras. Nosso ponto de partida é afirmar que a construção coerente de alternativas ecossociais não é tarefa para um horizonte distante. As práticas, horizontes e políticas de justiça socioambiental existem, já são praticadas e podem ser ampliadas. No entanto, não bastam “ilhas de resistência”. Diante de polarizações simplificadoras e do discurso de que “não há alternativa”, é preciso avançar na ampliação de outro paradigma que defenda radicalmente a vida e todas suas dimensões e interfaces com classe, gênero, raça e etnias, na natureza. Construir uma transição ecossocial não é mais uma escolha, é uma necessidade urgente. As diretrizes acima apontam tanto para tarefas coletivas de formulação política como para ações e movimentos práticos que devem envolver milhões de pessoas. Nosso próximo passo será desenvolver essas diretrizes com todas e todos que se façam solidários e solidárias com os objetivos e propostas deste Chamado.